05/02/2009 - A crise mundial de alimentos, conseqüência da alta internacional dos preços, já é uma realidade que aflige cerca de 1,1 bilhão de pessoas em pelo menos 36 países, segundo contas da Organização das Nações Unidos para a Agricultura (FAO). De olho no desafio de resolver estruturalmente o problema, participantes do Fórum Social Mundial (FSM 2009) defenderam a multiplicação de práticas agroecológicas, em escala global, a partir da revalorização dos saberes ancestrais aliada à ciência e à modernidade.
Será um longo caminho, defenderam os participantes da mesa “Agroecologia na América Latina”. Atiçado pela chamada Revolução Verde, que propagou a agricultura intensiva baseada no uso de insumos químicos e grandes monoculturas a partir da década de 60, o planeta passou a testemunhar a substituição da agricultura familiar, baseada na auto-suficiência alimentar e nos mercados locais, pela grande agroindústria orientada para a monocultura de produtos de exportação. Assim, passou a ser cada vez maior o número de pessoas a serem alimentadas por um número cada vez menor de produtores e fornecedores de sementes, o que teria gerado um descompasso entre a evolução dos sistemas agrícolas e quem efetivamente vive no campo. "O que a Revolução Verde fez foi interromper o processo de inovação no nível local", diz Paulo Peter, da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA).
Para os palestrantes, a solução está longe de ser simples, mas passa pela construção de um modelo agrícola com maior biodiversidade alimentar e independente de insumos não renováveis ligados ao petróleo. O fortalecimento da agricultura familiar e a adoção de novas práticas baseadas na produção agroecológica também serão necessários, assim como o avanço do consumo consciente e a reestruturação do cardápio em favor de alimentos produzidos pelos princípios do comércio justo. Isto é, economicamente viáveis, socialmente justos e ambientalmente corretos.
"A agroecologia tem uma grande oportunidade diante da crise porque acreditamos num modelo múltiplo, diverso e adaptado às culturas locais", acredita Felipe Inigues, do Movimento Latino Americano de Agroecologia (Maela), que reúne mais de 200 associações de 21 países. Isto não significa, contudo, que basta apostar na produção orgânica. "A diversificação é fundamental para a segurança alimentar de quem vive no campo. Não basta ser orgânico se for monocultura”, completa.
Quem concorda é o produtor Roberto Ramires, que representou a Associação de Agricultura Agroecológica da Bolívia durante o FSM. A organização, que reúne 30 mil produtores, aposta em um tripé: alimentos saudáveis e diversos, valorização do homem do campo e resgate das culturas locais com inclusão social. "Esse modelo tecnológico não serve para nós. O mundo precisa entender que os pequenos produtores não são marionetes nem são os cientistas os únicos seres pensantes", afirmou.
Sistematização
Para reafirmar o papel dos agricultores como geradores de conhecimento e inovação, a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) aposta na sistematização das experiências que já existem. Segundo a representante da ANA, Maria Emília Pacheco, isso inclui o mapeamento de soluções técnicas e sócio-organizativas capazes de promover a eficiência econômica e a sustentabilidade ecológica dos agroecossistemas. “Precisamos intensificar o intercâmbio de experiências inovadoras, mas é igualmente importante sistematizar essas experiências”, afirma.
Até o momento, a ANA já identificou mais de mil iniciativas em todo o país, incluindo áreas como o manejo de recursos hídricos e de criação animal, bancos de semente e sistemas agroflorestais, entre outros.
Diálogo de saberes
O professor e membro da Sociedade Científica Latino-Americana de Agroecologia (Socla), Walter Priosti, reconhece a necessidade de revalorização dos conhecimentos tradicionais em agroecologia, mas defende também maior participação das universidades no desenvolvimento e difusão de tecnologias e práticas direcionadas ao segmento. "Devemos ter cuidado com o perigo que é negar o papel da ciência nesta luta, até porque a ciência produzida para o pequeno e médio produtor é diferente dessa ciência que resultou na Revolução Verde", argumenta Priosti.
Segundo ele, esta aliança é cada vez mais necessária diante da perversidade gerada pela própria Revolução Verde. É que os sistemas alternativos, diz, tendem a ficar cada vez mais restritos a ambientes hostis, justamente aqueles pelos quais a grande indústria não mostra interesse diante das dificuldades de cultivar. “Isso demanda a geração e difusão de novos conhecimentos. Os sistemas alternativos têm a capacidade de dobrar ou triplicar a produção mundial de alimentos, mas para isso precisamos somar esforços”, completa.
Se depender da Socla, diz, não faltará apoio. Segundo Priosti, já há centros de pesquisa em Agroecologia articulados em países como Brasil, Venezuela, Argentina, Bolívia, Peru e Equador. "E este ano começará o doutorado na Universidade Nacional da Colômbia", completa.
Quem também concorda com a necessidade de um novo diálogo entre produtores e pesquisadores é Paulo Peter, da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA). "Não adianta mudar técnicas sem mudar os procedimentos de geração do conhecimento. Por isso falamos na ABA em práticas sociais de construção de conhecimento", diz. Isso implica, segundo ele, em alterar as lógicas de apropriação de conhecimento no nível local. "A ciência muitas vezes se coloca como monopolista do saber. Pesquisa participativa não é o agricultor ir até a universidade. É o contrário", defende.
Para chegar lá, contudo, é imprescindível conhecer os atores dispostos a se engajar nessa nova frente de inovação, avisa Peter. A ABA já mapeou 70 iniciativas de ensino em agroecologia no Brasil, da extensão ao doutorado. Até novembro, ABA e Socla devem concluir também um mapeamento dos espaços de pesquisa em agroecologia em toda a América Latina. “Precisamos nos conhecer melhor. Sem luta, não há vitória”, completa Felipe.
Por Vinícius Carvalho, jornalista do Portal da RTS